21 de julho de 2008

A view to a kill

Não que a minha avó fosse louca, nada disso, para alem de se vestir sempre como se a Rainha de Inglaterra pudesse ir lá a casa a qualquer momento e de tomar uma centena de comprimidos para dormir e outros tantos para acordar e de beber uma garrafa de litro de água da pedras por dia pode-se dizer que até estava muito bem, em 1986 em casa dela onde eu passava o Verão viviam: ela o meu avô os meus tios o meu primo a dona Isilda, empregada da minha avó e só da minha avó, a Cremilde empregada da casa e o filho dela o António, um rapazola quase em idade militar que trabalhava na padaria do meu avô, bem a padaria já não era dele mas continuava a referir-se a ela como se o fosse, o meu avô tinha sido padeiro toda a vida até que compro a padaria onde trabalhava, modernizou-a e depois quando achou que já tinha dinheiro suficiente “reformou-se” passava o dia entre copos, mulheres e jogo, o certo é que a pouco e pouco o dinheiro foi-se, tomou então rédeas da família a minha avó, vendeu a padaria e algumas casas e a quinta, guardou o dinheiro em nome dela e dava ao meu avô uma mesada para ele se “entreter”. A casa era enorme e misteriosa e sempre me tinha fascinado, toda a minha infância sempre me tinha sentido um estranho naquela casa estranha onde havia portas que nunca se abriam onde não se podia correr ou brincar e onde tinha-mos de nos vestir para jantar. Os meus dias, quando não andava na rua ou em casa de algum miúdo da vizinhava, vizinhança que ficava pelo menos a dez minutos a pé a mais próxima, estava enfiado debaixo das saias da Cremilde, quer dizer andava pela cozinha que era o reino dela e onde eu podia fazer o que bem me apetecesse que eu era “o menino” e só lá ia um mês por ano, quem aproveitava bem o facto de eu estar ali para “entreter” a malta da casa era o meu primo, levantava-se com as galinhas e só voltava ao jantar, voltava porque senão a minha avó deserdava-o que o jantar era sagrado. No andar de cima havia um quarto que estava sempre fechado, ao subir a escada e do lado direito, o que dava para a as traseiras era o quarto dos meu tios depois o do meu primo depois a casa de banho depois o dos meus pais, que nunca foi utilizado, depois o meu e no fim uma espécie de despensa das roupas de cama e assim, do outro lado em frente, do lado da rua outra despensa igual que era o quarto do meu avô, o escritório/biblioteca que ocupava dois quartos e que tinha as portas sempre abertas, o quarto da minha avó e o quarto misterioso que estava sempre fechado à chave e que quando um dia perguntei à Cremilde o que lá estava ela fez um ar estranho e desviou a conversa. Aquele quarto chamava por mim e eu sentia uma vontade enorme de lá entrar. Um dia tive uma ideia, precisava de ajuda, pedi delicadamente à minha avó, entre a sopa e a galinha de fricassé se podia convidar o Chicha a passar uns dia lá em casa que andava meio aborrecido e que ele era filho de boas famílias e o pai dele trabalhava no banco e ela depois lá aceitou “Está bem, mas o menino veja lá quem é que trás cá para casa” e vai a Isilda “E olhe vai ter de dormir consigo que temos os quartos todos ocupados”, a partir desse dia fiquei a amar a Isilda, e assim foi, telefonei ao Chicha e o meu tio um alemão com quase dois metros que arranhava um português macarrónico lá foi no seu Ford RS 200 amarelo novinho em folha busca-lo à paragem do autocarro, depois de concluídas as formalidades de apresenta-lo à família , depois de ele ter debitado todo o historial da família dele à minha avó e depois de a Isilda lhe ter explicado o funcionamento da casa fomos para o meu quarto onde ele pode finalmente mudar de roupa e depois de pôr-mos a conversa em dia e depois de devidamente apresentado à Cremilde “ái que o menino tá tão magrinho, mas isso resolve-se que a sua mãezinha nem o vai conhecer quando sair daqui” levei-o a explorar a casa e os anexos o pomar e os terrenos em volta e foi quando lhe falei no quarto misterioso e se ele ainda tinha “o Dom” é que o Chicha para alem de ser uma febra era um ás a abrir fechaduras, estava-lhe no sangue, de tal maneira que hoje está em Caxias a ver se pensa melhor o que quer da vida, mas nessa altura o gajo era mesmo um ás. Depois do jantar fomos para a sala a minha avó a minha tia e a Isaura entretidas com a televisão e o meu tio de volta de umas revistas técnicas alemãs incompreensíveis ao comum dos mortais, na varanda eu o Chicha e o meu primo, o meu avô como sempre saía para “espairecer” e gastar mais umas milenas no jogo e mulheres, e ali ficámos sentados na conversa e a fumar à vez e às escondidas por trás da buganvília até o meu primo se ir embora que tinha de ir à pesca de manhã. Esperamos que se retirassem todos, o mais difícil foi o meu tio mas como parecia que ele estava em transe lá fomos os dois para o meu quarto, esperamos mais uma hora até todos estarem a dormir e avançamos com o plano, foi canja o Chicha abriu a porta num abrir e fechar de olhos e assim ficou destrancada até que pudéssemos voltar no dia seguinte, mal dormi nessa noite, por causa disso e por causa da chicha do Chicha, que com a excitação de termos feito algo assim tipo espião russo o deixou mais excitado que um urso com o cio e pode-se dizer que tivemos uma noite muito agradável. No dia seguinte aproveitámos que era Domingo e enquanto a minha avó e a Isaura e a os meus tios iam à missa, para explorar o quarto misterioso. Desilusão das desilusões. Três guarda fatos cheios de vestidos e de roupas velhas, uma mesa e uma cadeira. Nada de interessante, mas porquê manter aquele quarto fechado? Resolvi explorar melhor, mandei o Chicha para baixo a ver se não vinha ninguém e fui à descoberta, nada, nada de nada. Desci as escadas e fui direito à cozinha e perguntei cara à cara à Cremilde a razão daquele quarto e que já lá tinha estado e tudo e que ela de uma vez por todas tinha de me dizer tudo. “Olhe menino, aquele era o quarto dos seus avós, o quarto onde dormiam os dois. Depois de o seu avô variar a senhora sua avô mudou-se a ela para outro quarto e a ele para o quarto das roupas e mandou fechar aquele quarto da mesma maneira que fechou o coração. E só ela é que tem a chave e é onde guarda o enxoval dela de quando era nova.” Pois, afinal a minha avó não era louca nem, nada que se parecesse, tinha era o coração partido. O pior foi depois. Entretanto o Chicha tinha desaparecido, grande amigo aquele que lhe tinha pedido para ficar a guardar, mas dele nem sinal procurei por todo o lado até que fui dar com o António nas garagens com as calaças na mão debruçado sobre o carro do meu tio, um ar ofegante e o Chicha por trás dele a fazer o que ele fazia de melhor, ia eu já pra interromper “mas afinal a festa é aqui e ninguém me convidou” mas não tive tempo de nada, só ouvi a minha avó chamar por mim, “O menino pode chegar aqui por favor?”. Pois é, tinha-me esquecido de fechar a porta do quarto! E assim o Chicha lá teve de se ir embora e eu tive de ficar de castigo. Infelizmente. Para ele, que o meu castigo foi ajudar o António a limpar as garagens...

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